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Банкир-анархист и другие рассказы
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«Voc^e recorda-se, n~ao 'e verdade? daquilo em que eu, por um racioc'inio rigoroso, assentei que devia ser o processo de acc~ao dos anarquistas… Um processo, ou processos quaisquer, pelo qual se contribu'isse para destruir as ficc~oes sociais sem, ao mesmo tempo, estorvar a criac~ao da liberdade futura, sem, portanto, estorvar em coisa nenhuma a pouca liberdade dos actuais oprimidos pelas ficc~oes sociais; um processo que, sendo poss'ivel, criasse j'a alguma coisa da liberdade futura…

«Pois bem: uma vez assente este crit'erio, nunca mais deixei de o ter presente… Ora, na altura da nossa propaganda em que lhe estou falando, descobri uma coisa. No grupo de propaganda — n~ao 'eramos muitos; 'eramos uns quarenta, salvo erro — dava-se este caso: criava-se tirania.

— Criava-se tirania?… Criava-se tirania como?

— Da seguinte maneira… Uns mandavam em outros e levavam-nos para onde queriam; uns impunham-se a outros e obrigavam-nos a ser o que eles queriam; uns arrastavam outros por manhas e por artes para onde eles queriam. N~ao digo que fizessem isto em coisas graves; mesmo, n~ao havia coisas graves ali em que o fizessem. Mas o facto 'e que isto acontec'ia sempre e todos os dias, e dava-se n~ao s'o em assuntos relacionados com a propaganda, como fora deles, em assuntos vulgares da vida. Uns iam insensivelmente para chefes, outros insensivelmente para subordinados. Uns eram chefes por imposic~ao; outros eram chefes por manha. No facto mais simples isto se via. Por exemplo: dois rapazes iam juntos por uma r'ua fora; chegavam ao fim da r'ua, e um tinha que ir para a direita e outro para esquerda; cada um tinha conveni^encia em ir para o seu lado. Mas o que ia para a esquerda dizia para o outro

«Venha voc^e comigo por aqui»; o outro respondia, e era verdade: «Homem, n~ao posso; tenho que ir por ali» por esta ou aquela raz~ao… Mas afinal, contra sua vontade e sua conveni^encia, l'a ia com o outro para a esquerda… Isto era uma vez por persuas~ao, outra vez por simples insist^encia, uma terceira vez por um outro motivo qualquer assim… Isto 'e, nunca era por uma raz~ao l'ogica; havia sempre nesta imposic~ao e nesta subordinac~ao qualquer coisa de espont^aneo, de como que instintivo… E como neste caso simples, em todos os outros casos; desde os menos at'e aos mais importantes… Voc^e v^e bem o caso?

— Vejo. Mas que diabo h'a de estranho nisso? Isso 'e tudo quanto h'a de mais natural!..

— Ser'a. J'a vamos a isso. O que lhe peco que note 'e que 'e exactamente o contr'ario da doutrina anarquista. Repare bem que isto se passava num grupo peque~no, num grupo sem influ^encia nem import^ancia, num grupo a quem n~ao estava confiada a soluc~ao de nenhuma quest~ao grave ou a decis~ao sobre qualquer assunto de vulto. E repare que se passava num grupo de gente que se unir'a especialmente para fazer o que pudesse para o fin'i anarquista — isto 'e, para combater, tanto quanto poss'ivel, as ficc~oes sociais, e criar, tanto quanto poss'ivel, a liberdade futura. Voc^e reparou bem nestes dois pontos?

— Reparei.

— Veja agora bem o que isso representa.. Um grupo pequeno, de gente sincera (garanto-lhe que era sincera!), estabelecido e unido expressamente para trabalhar pela causa da liberdade, tinha, no fim de uns meses, conseguido s'o uma coisa de positivo e concreto — a criac~ao entre si de tirania. E repare que tirania… N~ao era uma tirania derivada da acc~ao das ficc~oes sociais, que, embora lament'avel, seria desculp'avel, at'e certo ponto, a'inda que menos em n'os, que combat'iamos essas ficc~oes, que em outras pessoas; mas enfim, viv'iamos em meio de uma sociedade baseada nessas ficc~oes e n~ao era inteiramente culpa nossa se n~ao pud'essemos de todo fugir `a sua acc~ao. Mas n~ao era isso. Os que mandavam nos outros, ou os levavam para onde queriam, n~ao faziam isso pela forca do dinheiro, ou da posic~ao social, ou de qualquer autoridade de natureza fict'icia, que se arrogassem; faziam-no por uma acc~ao de qualquer esp'ecie fora das ficc~oes sociais. Quer dizer, esta tirania era, relativamente `as ficc~oes sociais, uma tirania nova. E era uma tirania exercida sobre gente essencialmente oprimida j'a pelas ficc~oes sociais. Era, ainda por cima, tirania exercida entre si por gente cujo intuito sincero n~ao era sen~ao destruir tirania e criar liberdade.

«Agora ponha o caso num grupo muito maior, muito mais influente, tratando j'a de quest~oes importantes e de decis~oes de car'acter fundamental. Ponha esse grupo a eneaminhar os seus esfonjos, como o nosso, para a formac~ao de uma sociedade livre. E agora diga-me se atrav'es desse carregamento de tiranias entrecruzadas voc^e entrev^e qualquer sociedade futura que se pareca com uma sociedade livre ou com uma humanidade digna de si pr'opria…

— Sim: isso 'e muito curioso…

— 'E curioso, n~ao 'e?… E olhe que h'a pontos secund'arios tamb'em muito curiosos… Por exemplo: a tirania do aux'ilio…

— A qu'e?

— A tirania do aux'ilio. Havia entre n'os quem, em vez de mandar nos outros, em vez de se impor aos outros, pelo contr'ario os auxiliava em tudo quanto podia. Parece o contr'ario, n~ao 'e verdade? Pois olhe que 'e o mesmo. 'E a mesma tirania nova. 'E do mesmo modo ir contra os princ'ipios anarquistas.

— Essa 'e boa! Em qu^e?

— Auxiliar algu'em, meu amigo, 'e tomar algu'em por incapaz; se algu'em n~ao 'e incapaz, 'e ou faz^e-lo tal, ou sup^olo tal, e isto 'e, no primeiro caso uma tirania, e no segundo um desprezo. Num caso cerceia-se a liberdade de outrem; no outro caso parte-se, pelo menos inconscientemente, do princ'ipio de que outrem 'e desprez'ivel e indigno ou incapaz de liberdade.

«Voltemos ao nosso caso… Voc^e v^e bem que este ponto era grav'issimo. V'a que trabalh'assemos pela sociedade futura sem esperarmos que ela nos agradecesse, ou arriscandonos, mesmo, a que ela nunca viesse. Tudo isso, v'a. Mas o que era de mais era estarmos trabalhando para um futuro de liberdade e n~ao fazermos, de positivo, mais que criar tirania, e n~ao s'o tirania, mas tirania nova, e tirania exercida por n'os, os oprimidos, uns sobre os outros. Ora isto 'e que n~ao podia ser…

Pus-me a pensar. Aqui havia um erro, um desvio qualquer. Os nossos intuitos eram bons; as nossas doutrinas pareciam certas; seriam errados os nossos processos? Com certeza que deveriam ser. Mas onde diabo estava o erro? Pus-me a pensar nisso e ia dando em doido. Um dia, de repente, como acontece sempre nestas coisas, dei com a soluc~ao. Foi o grande dia das minhas teor'ias anarquistas: o dia em que descobri, por assim dizer, a t'ecnica do anarquismo.

Olhou-me um momento sem me olhar. Depois continuou, no mesmo tom.

— Pensei assim… Temos aqui uma tirania nova, uma tirania que n~ao 'e derivada das ficc~oes sociais. Ent~ao de onde 'e ela derivada? Ser'a derivada das qualidades naturais? Se 'e, adeus sociedade livre! Se uma sociedade onde est~ao em operac~ao apenas as qualidades naturais dos homens — aquelas qualidades com que eles nascem, que devem s'o `a Natureza, e sobre as quais n~ao temos poder nenhum —, se uma sociedade onde est~ao em operac~ao apenas essas qualidades 'e um amontoado de tiranias, quem 'e que vai mexer o dedo m'inimo para contribuir para a vinda dessa sociedade? Tirania por tirania, fique a que est'a, que ao menos 'e aquela a que estamos habituados, e que por isso fatalmente sentimos menos que sentir'iamos uma tirania nova, e com o car'acter terr'ivel de todas as coisas tir'anicas que s~ao directamente da Natureza — o n~ao haver revolta poss'ivel contra ela, como n~ao h'a revoluc~ao contra ter que morrer, ou contra nascer baixo quando se prefer'ia ter nascido alto. Mesmo eu j'a lhe provei que, se por qualquer raz'ao n~ao 'e realiz'avel a sociedade anarquista, ent~ao deve existir, por ser mais natural que qualquer outra salvo aquela, a sociedade burguesa.

«Mas seria esta tirania, que nascia assim entre n'os, realmente derivada das qualidades naturais? Ora o que s~ao as qualidades naturais? S~ao o grau de intelig^encia, de imaginac~ao, de vontade, etc., com que cada um nasce — isto no campo mental, 'e claro, porque as qualidades naturais f'isicas n~ao v'em para o caso. Ora um tipo que, sem ser por uma raz~ao derivada das ficc~oes sociais, manda noutro, por forca que o faz por lhe ser superior em uma ou outra das qualidades naturais. Domina-o pelo emprego das suas qualidades naturais. Mas h'a uma coisa a ver: esse emprego das qualidades naturais ser'a leg'itimo,isto 'e, ser'a natural?

«Ora qual 'e o emprego natural das nossas qualidades naturais? O servir os fins naturais da nossa personalidade. Ora dominar algu'em ser'a um fim natural da nossa personalidade? Pode s^e-lo; h'a um caso em que pode s^e-lo: 'e quando esse algu'em est'a para n'os num lugar de inimigo. Para o anarquista, 'e claro, quem est'a no lugar de inimigo 'e qualquer representante das ficc~oes sociais e da sua tirania; mais ningu'em, porque todos os outros homens s~ao homens como ele e camaradas naturais. Ora, voc^e bem v^e, o caso da tirania que t'inhamos estado criando entre n'os n~ao era este; a tirania, que t'inhamos estado criando, era exercida sobre homens como n'os, camaradas naturais, e, mais ainda, sobre homens duas vezes nossos camaradas, porque o eram tamb'em pela comunh~ao no mesmo ideal. Conclus~ao: esta nossa tirania, se n~ao era derivada das ficc~oes sociais, tamb'em n~ao era derivada das qualidades naturais. E essa pervers~ao, de onde 'e que provinha?

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